sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Sentidos

Ninguém terá deixado de ouvir a incrível estória do Arquiteto Surdo que encontrou o Cliente Analfabeto, e nem do resultado também incrível que esse encontro produziu.

Sentado em seu escritório, cachimbo suspenso no ar, o Arquiteto Surdo tentava decifrar a tecnologia empregada pelos mudejares na construção de seus templos, quando viu um grande sorriso aparecer em sua porta e chacoalhar vibrantemente sua outra mão. Com sua experiência, não foi difícil deduzir que se tratava de um Cliente; requerendo certa expertise, não foi mais difícil deduzir o analfabetismo, já que o “não perturbe” da porta teve o mesmo efeito nulo que um alarme de incêndio teria sobre o Arquiteto Surdo.

O fato é que o Arquiteto Surdo jamais escutou qualquer palavra dita durante as duas horas seguintes, quando o Cliente Analfabeto relatou em detalhes tudo que ele havia visto e memorizado no discovery chanel e novela das sete e que queria ver usado em sua obra.

“Bem”, pigarreou o Arquiteto Surdo, quando notou que o cliente havia terminado, “é muito interessante isso, com certeza. Veja você que coisa curiosa: a humanidade não muda suas aspirações desde seu alvorecer. Imagine você que os mudejares...”, e colocou-se a discorrer sobre seu velho problema dos arquitraves muçulmanos, que o Cliente Analfabeto imaginou, a princípio, ter alguma ligação com a cerâmica que imita madeira que ele havia acabado de citar, mas logo acabou se entretendo com a estória e a conexão entre os assuntos se perdeu de vez.

“Então ficamos assim,meu caro” disse o Arquiteto Surdo ajeitando-se na poltrona, sem tirar o cachimbo do ponto fixo em que se suspendia no ar: “O senhor me mande um e-mail com suas idéias, para que eu não me esqueça de nada,” adaptando seu truque característico para disfarçar a surdez à ocasião especifica “e logo que eu tiver um estudo pronto, eu o aviso”.

Conforme o previsto, o email, nunca chegou; já o estudo ficou pronto rapidamente, e este – apesar de não conter nada daquilo que fora solicitado, nem mesmo a cobertura retrátil que o Cliente Analfabeto insistia em chamar de “teto solar” – era magnífico.
Não se sabe se por vergonha de nunca ter enviado o email, ou porque aquele era o prédio mais bonito que ele já havia visto – mais até do que “aquele que os árabes fizeram que nem um barquinho” – o Cliente não soube recusar, e as obras iniciaram na semana seguinte.

“Eu devia ter lhe escutado, meu caro”, disse o Arquiteto Surdo caminhando pela calçada no dia da inauguração. “Imagine... Eu é que fiquei de lhe mandar o email!” respondeu o feliz Cliente Analfabeto. A imagem dos caminhões de verdura descarregando no lobby daquele colosso de mármore e vidro não incomodava em nada; afinal, seu Sacolão anterior era péssimo, e ele mal podia esperar para ver a cara do fiscal da vigilância sanitária.

Já o arquiteto, prostrado diante do resultado, só pensava na humilhação pública que se anunciava, e de como ele poderia ter deixado de notar que aquela foto do Ceasa recebida não tratava de forma, mas de conteúdo.

A crítica arquitetônica foi implacável. A obra, sucesso mundial. Certificado LEED Gold, e destaque nos congressos acadêmicos sobre sustentabilidade. Aclamado mais uma vez, o Arquiteto Surdo, cachimbo em punho, admirava seu Pritzker na estante quando um outro Cliente passou reto pelo não perturbe e lhe mostrando uma revista com fotos da obra. A revista estava de ponta cabeça. E o arquiteto disse “Não é incrível o que os Mudejares conseguem fazer com um tijolo? Vou lhe contar...”

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